fantasiosa rotina

Tinha tudo pra ser um fim de tarde normal. Uma noite que parecia chegar trazendo uma chuva que não caia já algum tempo. Uma programação de TV sem surpresas, a mesma que pizzaria faria a entrega dali a algumas horas, os mesmos sabores e possivelmente com o mesmo entregador. Sentado na varanda, com as pernas esticadas sob um pequeno móvel, ele aguardava a chegada da lua lendo aquele livro que já o prendia em um mundo paralelo.

Ascendeu o narguilé que ficava em sua sala e o trouxe para perto no lado de fora, preencheu com o que restava daquela essência de maçã. A essência parecia vir junto com as lembranças daquela viagem, torcia para que as memórias não se acabassem como a essência. Era realmente estranho o fato de querer se controlar memórias, elas realmente de alguma forma se pareciam com aquele fumo, doce e suave. Lembranças e pensamentos que entravam brutalmente pelo corpo, acompanhando a tragada forte, uma sequência de memórias que atabalhoadas vinham com flashes e fotos. Com a fumaça que soltava, saiam algumas lembranças dissipadas pelo vento e sentia o gosto da fruta que embalava a essência percorrer meu corpo prazerosamente e parecia que gostava de permanecer.

O interfone tocando, levanta já procurando a carteira para pagar a pizza. Mas ele não pediu pizza, também não costuma ter visitas, pelo menos não visitas que não o avisassem previamente. Atendeu. Um nome comum, mas não tão próximo. Deixou subir. O tempo do elevador era demorado suficiente para um interrogatório ser feito, antes mesmo da porta de casa ser aberta. Mas aproveitou essa lentidão para ficar um pouco mais apresentável, é verdade que estava em casa mas não precisava estar tão largado, vestiu rapidamente uma camisa branca, uma bermuda esportiva preta que ficava pouco abaixo do joelho. Perfumou-se e molhou o cabelo rapidamente para poder abaixá-lo e fazendo isso não assustar a visita.
A campainha tocou. A porta foi aberta. O sorriso amarelo de quem não sabia o motivo da visita, se encontrou com olhos assustados que procuravam algo, mas não sabiam o que. Convidada para entrar. Entrou. Sentou. Aceitou uma cerveja para início de conversa. Sabia que não seriam muitas, pois tinham poucas e logo teriam de ir para o destilado. O que poderia acabar os levando para outro lado.

Tentava não tirar os olhos dos olhos dela, mas era tolice. Os olhos quase não se cruzavam, em meio às palavras dela ele não conseguia não percorrer a gota de cerveja, que ousada, escapou pelo pequeno espaço entre os lábios dela e a boca da garrafa, percorrendo rapidamente o delicado queixo, tocar cada parte do pescoço rapidamente, até começar a se perder pelo colo aberto. Parecia atrair seu foco de uma forma tão absurda que despertou uma tímida risada dela. Enquanto limpava com as costas da pequena mão o canto da boca. Os olhos ficavam pequenos, apertados, levados. Olhos que o chamavam para brincar. Olhos loucos para aprontar. Ele se envergonhava no seu sorriso, estava completamente dominado, totalmente preso por ela. Sem saber como sair daquela situação que travava, levantou abruptamente, como quem precisa sair de um lugar antes que comece a agir por impulso. Caminhou até a cozinha, perguntou se ela queria algo. Ela aceita, ele apronta o copo. Volta pra sala, não a encontra, busca pela casa, caminha no corredor silêncio, para na porta do banheiro, pergunta se esta tudo bem. Ela abre. Derruba o copo no movimento do corpo. O copo molha seu vestido. Ele oferece uma camisa. Ela aceita. Ele caminha até o quarto. Ela vai atrás.

Não são muitas opções dele que servem nela. Constrangido ele pega a sua menor camisa, que parece ficar um vestido nela. Ela aceita. Ele da um gole. Ambos parados se olhando. Ela sorri e pede licença. Ele sai se desculpando por não sair antes. Ela veste rapidamente a camisa seca, que tão macia parece que esquenta. Sai pelo corredor perguntando onde deixa o vestido. Ele diz pra ela seguir sua voz. Ela entra em um cômodo escuro. Ele a puxa. Ela vai. Com os corpos encostados apenas em silêncio as respirações ofegantes dialogam algo que vária entre razão, ação, atitude, vontade, curiosidade e todas as outras perguntas que o tempo fez questão de colocar dentro da cabeça deles. As mãos dele percorrem a nuca dela como se soubesse exatamente o que fazer. As mãos dela na altura da cintura dele sobem devagar pela camisa, arranhando devagar. O silêncio fala demais. Chegar a ensurdecer. Com as bocas próximas, porém sem se tocar, parecem aproveitar cada segundo daquele momento. Parecem querer entender como foram capazes de passar tanto tempo sem conversar tão perto. Os lábios se tocam. As línguas dançam perfeitamente descompassadas. Os braços se envolvem. Ele a vira contra a parede. E a ergue, para que fique na sua altura e com as pernas entrelaçadas na sua cintura. A camisa dele parece colada ao corpo, ela a tira. Os sussurros são trilhas sonoras enquanto delicadamente cada peça é retirada com harmonia do corpo. De todas as danças sem ensaios, aquela era uma das mais perfeitas valsas já dançadas por dois corpos desconhecidos. (…)

Com o barulho de chuva na janela, ele acordou durante a madrugada. A bebida ainda parecia fazer morada dentro de sua cabeça. Olhou para o próprio peito ainda deitado, onde ela repousava tranquilamente e sem preocupação alguma, apenas vestida com o lençol. O compasso dos suspiros cansados dela, soavam como sinfonia de uma belíssima festa feita por ele. Involuntariamente ela sorri enquanto dorme. Sem que ela veja ele responde da mesma forma. A mão que antes apertava a própria cabeça tentando espremer a própria dor interna. Agora acaricia os curtos cabelos que compõe a harmonia daquele retrato. Alcança sem sair do lugar um pequeno papel onde escreve: “Seu sorriso é lindo enquanto você dorme…”. Repousa o papel sobre o celular dela e volta a dormir. Acorda pra trabalhar ainda assustado. Não a encontra e nem escuta o barulho do chuveiro. Sai do quarto meio atrapalhado e meio bêbado, caminha pela casa vendo toda a bagunça da noite anterior. Caminha até a porta e se depara com o mesmo papel que deixou sob o celular dela durante a madrugada, com a resposta no verso: “… o seu também. Vai ver você costuma sonhar com coisas boas”. Ele sorri, agora sem vergonha, guarda o papel na carteira e caminha para o chuveiro pra começar mais um dia normal. Mas guarda além do papel, as lembranças da noite passada. Que ele não quer que se perca na mesma fumaça. Deseja apenas que ela chegue mais vezes juntos com o cair da noite.

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autor_jorge

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