pode ser mais bonito que aqui

Ela fugiu.
Fugiu porque não suportava olhar aqueles móveis repletos de lembranças, de memórias de um tempo que parecia nunca ter existido de fato, de um tempo que parecia nunca ter acontecido.
Ela decidiu ir por que não conseguia mais lidar com aquela presença tão sólida, tão viva, sabendo que era só uma mentira, mais uma daquelas que contam para as crianças pararem de chorar.
Ela não ia voltar, ela nunca mais faria aniversário, e isso era tão absolutamente insuportável que ela sentia uma raiva quase tangível, uma vontade de gritar e de que ela estivesse viva, só para que pudesse ouvir e sentir aquele ódio.
Então ela fugiu.
E fugir não é tão simples como parece, não é covardia como muitos bradam por ai. Na verdade, ir embora, ir embora mesmo, demanda muita coragem. Coragem que ela herdou dela. Coragem do tipo que todos deveriam ter pelo menos uma vez na vida.
Ela teve.
Virou a mesa e partiu.
Tinha um emprego, pediu as contas.
Tinha um amor, deixou pra trás.
Tinha família, os deixou viverem por si sós.
Tinha amigos, livros, xícaras, roupas, pegou o que pode, os livros que mais gostava, e foi embora.
O mais estranho foi a sensação de vazio, o mais difícil. E era disso que ela precisava: sentir-se vazia de tudo, sentir-se livre de conselhos que não ajudam, de abraços que não curam, de pessoas que não findam a solidão. Precisava se esvaziar para, então, se preencher de si.
Quem era ela afinal?
Quanto dela era ela?
Ela não sabia.
As primeiras noites foram dolorosas. Aquele tipo de dor que não pode ser amenizada com analgésicos.
As lágrimas irrompiam de seus olhos com violência e velocidade, e feito tsunami levaram tudo que encontraram pelo caminho: culpa, raiva, incompreensão, e, por final, lhe estendeu a mão e a embalou num sono profundo. Sem sonhos.
Depois de dias, semanas, meses, o mundo ganhou novas nuances. A saudade, tão presente, se fez bela. As lembranças, tão estridentes, se fizeram calmas e, num ato de total generosidade, se perdoou.
Mais nobre que perdoar o outro é, quando por fim entendem-se as pequenas coisas da vida, se conceder perdão.
O amargor deu lugar a um sentimento de leveza nunca antes conhecido, tudo ficou bonito de um jeito que nunca havia sido.
Bonito do jeito que deveria ser.
Entendeu as partidas, abraçou as chegadas, e preencheu as novas paredes, os novos cômodos. Colocou quadros coloridos pela casa e móveis de madeira escura, com aquele cheiro tão característico e familiar.
Da vida antiga, só uma foto no espelho.
Pra não se esquecer de onde veio.
E nem o motivo da partida.
Ela fugiu.
Mas agora ela não foge mais…
Ela se encontrou.

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autor_kamila

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