Antes de sair, olha mais uma vez para o corredor. Ele não é muito extenso, nem muito largo, mas foi perfeito para tudo ser exatamente como foi. Já foi um pouco de tudo: Corredor da morte, matadouro, porta da esperança, pista de skate, lugar para se apoiar o colchão da visita quando não se cabia mais no quarto. Era ali que a gente se encontrava na manhã da ressaca, na manhã da briga, na manhã da saudade. Era sempre uma manhã diferente, ali era o travessão da história que escreveríamos nas paredes daquele dia. Só sabíamos que chegaríamos em nossos quartos, por aquelas paredes serem estrategicamente posicionadas para não cairmos. Agradece ele por mim.
Percebe também que quando fechar as janelas, a luz vai continuar entrando. Alguns lugares não escurecem nem mesmo ao anoitecer, o brilho sempre vem de algum lugar. Seja do sol, da lua, do suor do esforço, a chama de uma vela, da luz que vem de um filme que passa na televisão sem volume. Quem nasceu para brilhar, brilha até na escuridão. Deixa a cama arrumada, mas nada muito perfeito. Deixa o suficientemente arrumado para se deitar. Pode ser que um dia eu volte e queira simplesmente repousar para que as lembranças se juntem sem pressa ao meu redor. Tenta não pintar nada, deixa as cores que estão nas paredes. Eu não sei se essas tinham ouvidos, mas se tivessem teriam sem duvidas as melhores histórias do mundo pra contar. Não muda a cor do fundo da última foto, nem tenta esconder o passado quando alguém vier tirar a primeira foto de uma nova história. Eles vão entender, a mágica tá no ar.
Para um pouco antes de fechar a varanda pela última vez. Ali você teve tantas primeiras vezes. Teve a primeira conversa com a lua, admirou o nascer do sol inúmeras vezes, abriu seu coração pra ela, chorou de saudade, fumou o primeiro cigarro, tomou a primeira multa, a primeira bronca. Não tirou a rede de segurança pelo próprio bem. Acreditava que podia voar, aliás, acredita até hoje. Mas preferiu evitar. Preferiu apoiar o primeiro beijo no sereno, preferiu sentar e falar por horas a fio com a saudade que vivia tão longe. Encheu um espaço tão pequeno de lembranças, que foi melhor mesmo ter a rede de proteção. Era bem capaz de transbordar e cair.
Gostaria de te pedir cuidado na hora de fechar a porta da frente. Ela tem um segredo. Assim como você. Mas só algumas pessoas sabem. Assim como os seus. Cuidado porque dentro dela tem tanta coisa, que só de lembrar meus olhos se enchem de lágrimas. Tinha um aroma diferente de todas as outras, parecia ter o toque de todos que passavam por lá. Acolhia todos de uma forma tão única que sempre saiam dizem que queriam voltar ou ficar ali pra sempre. A gente fica assim mesmo, bobo, sem reação, quando descobre que o país das maravilhas existe quando a gente não fecha a porta pra ninguém. E que cerveja, sorriso e amigos são mais valiosos que qualquer vaso de dinastia Ming.
Leva no fundo dos seus olhos cada pedacinho desse lugar. Hoje eu sei que posso viver mil anos querendo construir um lugar igual e você vai entender o porquê disso um dia também. Conta pro teus netos, que você viu um lugar que a tristeza entrava no copo com gelo e sumia. Ou então virava fumaça. Conta que você viu que a inveja tem sono leve, que mora no andar de baixo e que bruxas existem. Conta que você viu de tudo um pouco, que viveram na velocidade que achavam certo. E saiba que eu vou voltar, eu sempre vou voltar. Não há lugar melhor no mundo que o nosso lugar. Saudade é só o começo de uma eterna lembrança boa.
Fecha a porta, deixa uma chave embaixo do tapete. A outra pode entregar na portaria.
Amém.