criada pela amargura

Naquela cadeira, amarrada e amordaçada, a mocinha daquela peça, chorava copiosamente enquanto envolto apenas de uma capa preta, o vilão sorria e bradava seu maligno plano para a platéia. Até que então o óbvio acontece, o mocinho chega, expulsa o vilão, liberta mocinha. Aos sons dos suspiros e aplausos a cortina se fecha. A luzes se ascendem. A cortina reabre. O elenco se curva. Ela não sorri, apenas aplaude e se levanta. Por educação e sem nenhuma surpresa. Sou a falta de emoção, criada da amargura.

A torcida inflama o estádio, as bandeiras estremecem com fortes solavancos em seus mastros. O momento é melhor para o seu time. Berra, xinga, esbraveja. Culpa a mãe do lateral direito por ele não dominar uma bola. Põe em dúvida a opção sexual do meia esquerdo por não saber cruzar. Fala como se entendesse, se junta aos milhões de técnicos de arquibancada.
O zagueiro não acompanha a explosão do atacante, que com um molejo leve de uma ginga brasileira, pedala para um lado e corre para o outro. Rede balançada, torcida inflamada, aplauso dado. Sorriso guardado. Apenas esmurra o ar como se ele merecesse. Sou o desabafo entalado na garganta, criado pela amargura.

As peças de roupas jogadas pela cama grande, formam tantas combinações que com tantas opções de escolha, prefere dizer que não tem com o que sair. O namorado apaixonado, já cansado no sofá, aceita e escuta todo seu enorme discurso de descontentamento com o armário. Aceita trocar o programa que antes era dele pelo o que ela possa escolher. Não uma peça que possa usar, e sim ampliar a já enorme dúvida dela do que vestir. Veste um velho jeans e uma camisa preta que deixa um de seus ombros a mostra. Assim simples, desvia os olhares de quase todos que a cruzam. Aponta o nariz para o céu e continua seu caminho carregando suas dezenas de sacolas. Sou a arrogância e a prepotência, criada pela amargura.

Hoje ela sorri menos, prefere gastar mais em nãos, ou mais em roupas. Mas tem hoje a estabilidade que tanto que queria. A rotina que o antes ela tanto fugia. Talvez, seja mais fácil vender felicidade do que senti-la de verdade. E em meio a tantas coisas que parece ter se esquecido nessa vida, além do belo sorriso e do “melhor abraço do mundo”. Prefere incluir o tempo nesse emaranhado de perdas. Como se nada tivesse sido bom o suficiente para se absorver e se passar pra frente. Sou a forma de esquecer alguém, criada pela amargura.

Mas ainda hoje, se diverte assistindo desenhos animados enquanto toma café, mesmo lendo livros de Jorge Amado antes de dormir. Ainda prende o cabelo de diversas formas, mas a mais bonita delas, ainda é feita sem ordem e com raiva, e sempre é seguida de um “dane-se vou assim mesmo”. Tão linda que quando você se vira e sai, seu reflexo ainda continua te olhado e sorri tamanha sua graça. Ainda escuta músicas para lembrar da infância, ainda se pinta de animais ou afina a voz, para arrancar sorriso de crianças em qualquer que seja a ocasião. É a que desculpa com a alma, mas não desculpa com as palavras pra ter a razão com ela o maior tempo possível. Sou a lembrança boa, que mantêm sua amargura. Para que você ainda possa chamar de amargura, aquele amor que tanto te desapontou.

autor_jorge

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